sábado, 7 de março de 2009

Máris Célis - 1º Colegial Variedade Linguística

LÍNGUA PADRÃO

Linguagem e sociedade

Linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inquestionável. Mais do que isso, podemos afirmar que essa relação é a base da constituição do ser humano. A história da humanidade é a história de seus organizadores em sociedade e detentores de um sistema de comunicação oral, ou seja, de uma língua.
Qualquer língua, falada por qualquer comunidade, exibe sempre variação. Pode-se afirmar mesmo que nenhuma língua se apresenta como entidade homogênea. Isso significa dizer que qualquer língua é representada por um conjunto de variedades. Concretamente o que chamamos de “língua portuguesa” engloba os diferentes modos de falar utilizados pelo conjunto de seus falares do Brasil, em Portugal, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor etc.
Língua e variação são inseparáveis. A diversidade da língua não deve ser encarada como um problema, mas como uma qualidade constitutiva do fenômeno lingüístico. Os falantes adquirem as variedades lingüísticas próprias da sua região, de sua classe social etc. De uma perspectiva geral, podemos descrever as variedades lingüísticas a partir de dois parâmetros básicos: a variação geográfica e variação social.
A variação geográfica está relacionada às diferenças lingüísticas no espaço físico, observáveis entre falantes de origens geográficas distintas. Exemplos: o uso de vogais abertas [mE’ladu] (no Nordeste) e uso de vogais fechadas [me’ladu] (no Sudeste); preferência pela posposição verbal na negação, como em “sei não” (no Nordeste) e “não sei” ou “não sei, não” (no Sudeste); uso do artigo definido antes de nomes próprios , como em “falei com a Joana” (Sudeste) e “falei com Joana” (Nordeste).
Tomando-se a comunidade de fala da língua portuguesa como um todo, podemo-nos referir às variedades brasileira, portuguesa, baiana, curitibana, rural paulista (ou caipira) etc.
A variação social, por sua vez, relaciona-se a um conjunto de fatores que têm a ver com a identidade dos falantes e também com a organização sociocultural da comunidade de fala. Nesse sentido, podemos apontar os seguintes fatores relacionados às variações de natureza social:
a) classe social – observa-se o uso de dupla negação, como “ninguém não viu”, “eu nem não gosto”, presença de [r] em lugar de [l] em grupos consonantais, como em “brusa”, “grobo” nas falas de grupos situados abaixo na escala social.
b) idade – uso de léxico particular, como o uso de gírias que denota faixa etária jovem.
c) sexo
d) profissão
e) situação ou contexto social – qualquer pessoa muda sua fala de acordo com o(s) seu(s) interlocutor(es) segundo o lugar em que se encontra – em um bar, em uma conferência – e até mesmo segundo o tema da conversa – fofoca, assunto científico. Ou seja, todo falante varia sua fala segundo a situação em que se encontra. Cada grupo social estabelece um contínuo de situações cujos pólos extremos e opostos são representados pela formalidade e informalidade. Em nossa sociedade, conferências, entrevistas para obtenção de emprego, solicitação de uma informação a um desconhecido, contato entre vendedores e clientes são, em geral, vistos como situações formais. Já situações como passeatas, mesas redondas sobre esporte, bate-papo em bar, festas de Natal nas empresas são definidas como informais. As variedades lingüísticas utilizadas pelos participantes das situações devem corresponder às expectativas sociais convencionais: o falante que não atender às convenções pode receber algum tipo de “punição”.
Aprendemos a falar na convivência. Mas, mais do que isso, aprendemos que devemos falar de um certo modo e quando devemos falar de outro. Os indivíduos que integram uma comunidade precisam saber quando devem mudar de uma variedade para outra.
Os parâmetros da variação lingüística são diversos, como se pode inferir da exposição feita até aqui. Assim no ato de interagir verbalmente, um falante utilizará a variedade lingüística relativa a sua região de origem, classe social, idade, escolaridade, sexo, profissão etc. e segundo a situação em que se encontrar.


As variedades lingüísticas e a estrutura social

Como já foi dito, em qualquer comunidade de fala, podemos observar a coexistência de um conjunto de variedades lingüísticas. Essa coexistência, entretanto, não se dá no vácuo, mas no contexto das relações sociais estabelecidas pela estrutura sociopolítica de cada comunidade. Na realidade objetiva da vida social, há sempre uma ordenação valorativa das variedades lingüísticas em uso, que reflete a hierarquia dos grupos sociais. Isto é, em todas as comunidades existem variedades que são consideradas superiores e outras inferiores. “Uma variedade lingüística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais” (Gnerre). Constata-se, de modo evidente, a existência de variedades prestigiadas e de variedades não prestigiadas nas sociedades em geral. As sociedades de tradição ocidental oferecem um caso particular de variedade prestigiada: a variedade padrão. A variedade padrão é a variedade lingüística socialmente mais valorizada de reconhecido prestígio dentro de uma comunidade, cujo uso é normalmente requerido em situações de interação determinadas, definidas pela comunidade como próprias em função da formalidade da situação, do assunto tratado, da relação entre os interlocutores etc. A questão da língua padrão tem uma enorme importância em sociedades como nossa.
A variedade padrão de uma comunidade – também chamada norma culta, ou língua culta – não é como um senso comum faz crer a língua por excelência a língua original, posta em circulação, da qual os falantes se apropriam como podem ou são capazes. O que chamamos de variedade padrão é o resultado de uma atitude social ante a língua, que se traduz, de um lado, pela seleção de um dos modos de falar entre variedades existentes na comunidade, de outro, pelo estabelecimento de um conjunto de normas que definem o modo “correto” de falar. Tradicionalmente, o melhor modo de falar e as regras do bom uso correspondem aos hábitos lingüísticos dos grupos socialmente dominantes. Em nossas sociedades de tradição ocidental, a variedade padrão, historicamente coincide com a variedade falada pelas classes sociais altas, de determinadas regiões geográficas.
A avaliação social das variedades lingüísticas é um fato observável em qualquer comunidade da fala. Freqüentemente, ouvimos falar em línguas “simples”, “inferiores”, “primitivas”. Para a Lingüística – ciência da linguagem – esse tipo de afirmação carece de qualquer fundamento científico. Toda língua é adequada à comunidade que utiliza, é um sistema completo que permite a um povo exprimir o mundo físico e simbólico em que vive. Assim como não existem línguas “inferiores”, não existem variedades lingüísticas “inferiores”. As línguas não são homogêneas e a variação observável em todas elas é produto de sua história e do seu presente. Em que se baseiam, então, as avaliações sociais? Podemos afirmar que os julgamentos sociais ante a língua – ou melhor, as atitudes sociais – se baseiam em critérios não lingüísticos: são julgamentos de natureza política e social. Não casual, portanto, que se julgue “feia” a variedade dos falantes de origem rural, de classe social baixa, com pouca escolaridade, de regiões culturalmente desvalorizadas. Consideramos, por exemplo, o r caipira “desagradável”, mas usamos esse mesmo som para falar “car” (carro) em inglês sem achar “feio”. Em resumo, julgamos não a fala, mas o falante, e o fazemos em função de sua inserção na estrutura social.


A Língua Padrão muda no tempo

Este é um fato elementar para quem quer entender as línguas: todas as línguas mudam ao longo do tempo. As formas lingüísticas consideradas pa­drões, principalmente na escrita, são mais resistentes à mudança - porque vivem sob controle severo! - mas também mudam. Vejamos algumas conseqüências que decorrem da mudança.
Uma delas é a relativa imprecisão de suas características. Um exemplo bastante visível é o caso da regência de alguns verbos. Há uma tendência mui­to forte na linguagem oral do português brasileiro de tornar transitivos dire­tos alguns verbos que tradicionalmente eram transitivos indiretos (Assisti um filme, por exemplo, em vez de Assisti a um filme). Nesses casos, a tendência já está passando à escrita, e talvez seja muito mais freqüente o emprego "errado" que o emprego "certo", mesmo em textos de boa qualidade, escritos por bons escritores ou jornalistas. Uma evidência dessa mudança na língua padrão é o fato de que estes verbos tornados transitivos diretos passaram a ocorrer com freqüência na escrita padrão na forma passiva, impossível sintaticamente com verbos transitivos indiretos (O jogo Brasil x Argentina foi assistido por milhões de telespectadores dos dois países; ou A Constituição nem sempre tem sido obedecida pelas autoridades federais).
Quando o uso chega a esse ponto, pode-se dizer que a mudança de padrão começa a se consolidar. Outro caso visível é a colocação dos pronomes no português brasileiro, que insiste sistematicamente em recusar algumas normas das gramáticas escolares. Na fala, o padrão de Portugal (que determinou na origem o do Brasil) desapareceu quase que por completo. Na escrita mantém-se mais visivelmente apenas a regra de não se começar período com pronome átono, mas mesmo esta é rompida em textos mais informais e nos textos literários.
Em outros casos, a resistência é muito mais forte. Veja-se, por exemplo, o fenômeno da concordância nos casos em que o sujeito aparece de­pois do verbo, do tipo foram inauguradas as usinas. Na língua oral - e isso mesmo nas faixas mais escolarizadas da população - há uma tendência sis­temática a não fazer a concordância (Foi inaugurado as usinas). Mas aqui a transformação não chegou ao padrão escrito de prestígio, embora seja fre­qüentíssima em textos escolares, o que costuma ser sintoma de que a mu­dança está avançando significativamente.
Outro aspecto que decorre da mudança da língua ao longo do tempo é a convivência (nem sempre pacífica!) entre formas arcaicas e formas con­temporâneas, isto é, as mudanças nunca acontecem subitamente. Pouco a pouco, as "novidades" (ou os "erros", dependendo do ponto de vista...) vão se popularizando e disseminando até o momento em que ninguém mais consegue perceber a nova forma como erro - exceto, é claro, os gramáticos, que por mais que reclamem e vociferem não conseguem “segurar” a mudança. Faça um teste: tente convencer pessoas comuns que o certo é dizer Se eu vir fulano, eu o aviso, e não Se eu ver fulano, eu aviso ele. Falar nisso: o padrão é Convencer pessoas que o certo é... ou Convencer pessoas de que o certo é...?

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